sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Os quilos

No exato segundo de encontro com o chão, nem um grupo de dez homens seria capaz de erguer aquele corpo. Ele, no momento em que bateu no asfalto da rua, pesava muito mais que a sua massa. Muito mais porque o desespero, os traumas, a ansiedade e o grito reprimido dentro da boca que não consegue gritar pesam. Uma vida inteira teve de caber naquele corpo. Entre a dúvida, passando pela certeza e o momento de encontro com o solo, acumulou-se o peso ainda do que vinha no futuro: da desesperança que aquela queda geraria em uma família. Todos esses quilos amontoados, jogados no corpo estirado na frente daquele prédio ironicamente tão verde, no segundo seguinte dissipam-se. Encontram os que vivem, e engordam as suas memórias.

sábado, 16 de outubro de 2010

O peso por trás do erro

Uma palavra dita por descuido, em uma falha no discurso, pode (muito mais do que palavras medidas) revelar um legado e um punhado de orgulho. Eles, que por muitas vezes se escondem na pressa das tarefas do cotidiano, querem se mostrar para o mundo quando há uma brecha.

-Seu pai pescou o maior peixe que eu já vi. Só ele sabe pescar assim, tão bem.
- É. Só eu... digo, meu pai.

domingo, 26 de setembro de 2010

Herança

Ela diz que, antes de sair, me abraçou forte e me disse adeus como se algo a mandasse o fazer. Ela, hoje, pinta um quadro mais bonito que minha foto, com meu sorriso mais cheio, vivo e meus sonhos acordados. Insiste em dizer que eu fui ao encontro do seu marido sem saber que ele descobrira. Sem saber. Sem saber.
Depois do encontro, por cima do portão, da árvore e de tudo, posso voltar o filme de minha vida. Vejo que a cabeça dela domou a pena, reescrevendo o roteiro de minha história. Vejo que, na verdade, ela não se despediu quando saiu. Viu-me dormindo e não quis me acordar. Fechou a porta atrás do pôr do dia, atrás da despedida de todo encontro furtivo, ignorando que eu sairia de casa sabendo que a vingança me alcançaria. Iria sabendo que um tiro resgataria a justiça de dentro da injustiça que eu cometi com outro por uma, dele. Por ela e por mim. Eu fui sabendo. Fui sabendo do meu fim.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O final do chá

O cheiro do chá me acordou calmamente. Depois de despertar do cochilo e ter noção de onde estava – o café que se tornara parte da minha casa desde que me mudei e passei a precisar de um lugar com o silêncio antigo de terno e gravata-, olhei para a mesa ao lado e o chá que me acordara já não estava mais lá. Só havia a xícara vazia e a cadeira muito afastada da mesa. Parecia que alguém tinha feito o pedido e o bebeu rapidamente pra depois fugir de lá. Minha vaidade me fez pensar que podia ser eu o motivo da fuga. Pensei no cheiro que não estava mais lá e olhei para o modo que o fio estava enrolado na alça. Meu nariz, então, lembrou-se do cheiro: capim-cidreira. Só podia ser ela. Ela não conseguiu lidar com o nervosismo de ficar tão perto de mim e fugiu.
Quando cheguei a essa conclusão o velho garçom retirou a xícara, arrancou-a de mim. Imediatamente o chamei e pedi um chá. A bebida chegou e me encarou, séria. Do fundo do copo veio até a superfície o rosto dela e em um jogo de espelhos, eu que estava no fundo olhando para cima e ela boiava lânguida na superfície, mexendo os braços.
Ouvi então sua voz, chamando o garçom e quando meus olhos encontraram os dela, vi que ela estava sentada em minha mesa. Com olhos grandes e um sorriso no canto da boca.
Este seria o final perfeito se não tivesse, em algum ponto incerto da história, voltado a dormir e sonhado.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Ciranda

Quatro olhos se fitam, com certezas
Até que dois sorrisos quase simultâneos se formam, entrelaçam e esbarram.
Tão congelados que ardem de verão,
os olhos contraditórios já não podem se enxergar

Quatro olhos se fitam sérios
Até que duas gotas quase simultâneas se formam, de outono escorrem e, de raiva, molham o chão
Tão congelados que ardem no inverno,
Os olhos contraditórios já não podem se enxergar

Quatro olhos se lembram, distantes
Congelados, ainda ardem com a memória
Até que dois sorrisos quase simultâneos se formam, crescem e somem e morrem
Os olhos contraditórios já não mais se verão
Os quatro olhos agora, de primavera, são oito, outros, novos quartetos

domingo, 27 de junho de 2010

Fora dos trilhos

Ele não agüentava mais ficar naquela sala. O sol demorava a baixar e o calor fazia as paredes encolherem, o sufocando. Ele queria sair daquele lugar. Seu paciente das seis horas não chegava, mas o ponteiro do relógio não alcançava a hora que lhe daria a permissão de ir embora. Começou, para afastar a sensação de claustrofobia, a pensar no porquê da escolha daquela profissão. Lembrou-se das visitas que fazia quando criança àquele mesmo consultório em que trabalhava. Ia com sua mãe visitar o trabalho do pai, com a promessa de um sorvete na saída. Em sua memória não conseguia resgatar nenhuma animação ao entrar no consultório de dentista, sentia até certa aversão à idéia de ser dentista. Mas fingia interessar-se para os pais.
Lembrou-se, então, da ida a sorveteria e das conversas que sempre começavam com um “Você vai ser um dentista igual ao pai!”. Por falta de análise e motivação, essas palavras entravam nele, e instalavam-se em sua cabeça até que eram acatadas. Ser um dentista significava estabilidade. Já teria o consultório do pai para trabalhar, a clientela do pai para atender, e um futuro traçado e seguro.
Conseguiu o caminho traçado e seguro. E era exatamente isso que o angustiava. Ele não se satisfazia com a idéia de agüentar o hoje, de suportar o hoje. Não se contentava com a idéia de moderar o presente por causa da segurança de um ser pacato uns anos depois. Ele sentia dentro do peito que seria completo justamente com a instabilidade. A instabilidade que lhe daria a emoção da alegria quando tudo desse certo.Queria sair dos trilhos para descobrir atalhos. Encantava-se com a beleza do encontro inesperado com minutos que se desprenderiam do relógio. Minutos de surpresa, de realização de prêmios não planejados e recompensas inéditas pelo seu trabalho inovador. Queria criar. Criar minutos soltos, onde é possível se ausentar um pouco do chão e encontrar em um caminho longo e estático, um sorriso. Ele não obtinha esses minutos soltos. Os minutos eram grudados no relógio e o tempo só passava na obturação, planejada na agenda da secretária, de uma boca ou na espera de um paciente que não vem.
Olhando atentamente, esperou o ponteiro dar a ultima volta que ratificaria a falta do ultimo paciente para sair do consultório e ir para casa.
Entrou no elevador e começou a relaxar. Acabar mais um dia era um alívio. O relaxamento aprofundou-se. Todas suas preocupações foram lentamente sumindo, suas dúvidas desapareceram aos poucos, suas idéias eram simplesmente apagadas da cabeça. Vivia aquele momento como se não tivesse nenhum futuro para traçar. Ficou simples. Foi escorregando o corpo lentamente contra a parede do elevador, e era como se sentisse menor. Depois não se sentia menor, porque algo lhe dizia que aquele era o seu tamanho real. Foi quando uma mão muito grande tocou na sua, e como uma junção de pequenos pedaços do ar, formou-se uma mulher esguia e gigante atrás dele. Da mulher enorme saiu a frase:
“Vamos tomar o sorvete, filhinho?”
Suas memórias, então, dissolveram-se totalmente. Dentro de sua cabeça infantil somente uma frase vivia, e gritava: Eu não sou um dentista!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Boa noite, pais

Meu lastro foi ter vocês construindo um ninho feito de luz. Conseguiram me indicar sem apontar, com o claro sentido e a pesada liberdade, a porta na qual devo entrar ou em que ponto da mesa devo jogar minha chance. As portas ficam hoje para trás, a luz se enfraquece e está distante no vácuo. Já vejo aproximar-se o dia que sabemos que iria chegar. Vem planando até que rapidamente, apesar de ter demorado tanto, bruscamente apesar de ser previsto, chega. Bate insistentemente em nossa porta, e entra enquanto dormimos. O dia me chama para morar em outro lar.Ele arranca de vocês e joga num susto, em meu colo, o fardo de iluminar o meu próprio turvo sentido do porvir.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Perto de uma última análise

No ônibus, uma senhora cega entrou. Na minha frente, sentou-se e aguardou. Não conseguia me concentrar na leitura, pois meu pensamento já havia tomado a forma e a essência daquela senhora. Assim como muitos acontecimentos, que para a maioria seriam banais, em mim, esse se tornou vital. Um estranho sentimento de aproximação invadiu meus olhos. Percebi, em súbito, a ligação.
Eu também não vejo, enxergo. Desde a juventude não percebo o que esta à mostra. Enxergo o que está escondido, atrás da porta, entre as linhas.

Minha atenção só seria desviada quando dois homens surdos e mudos entraram no exato mesmo ônibus. Influenciado pelo pensamento anterior, comecei a construir a segunda ligação de proximidade. Em toda minha vida, nunca falei de verdade. Nunca pude expor, por isso guardo idéias e opiniões. Abstenho-me, abstraio.

Minha fuga da realidade material chegou ao fim quando meu ponto surgiu na janela. Foi quando meus sentidos me traíram. Desci sem ver a moto ou ouvir sua buzina. E por uma fração de segundos, por milímetros de salvação, não acabei no estado mais próximo que poderia chegar dos conhecidos desconhecidos: cego, surdo e mudo.

Agora vivo a enxergar as conexões dos fatos ordinários.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Eu te peço

Conte nossas histórias como forma de não deixar a poeira assentar-se sobre elas. Veja parte de minha sombra ao lado dos pés dos outros e deixe como mérito pra eles só o que deixei faltar, pois o resto foi dado por mim primeiro e mereço os créditos. Sinta a voz do vento e veja o cheiro do frio quando estiver na serra, chovendo e aquelas músicas estiverem tocando. Não deixe que queime e se perca tudo. Revele fotos nos seus olhos, de tempos em tempos. Será cada vez mais raro, sim, mas ao menos que reste a longínqua raridade. Em um relance, um ato falho, um déjà vu, o que for. Acenda nossas formas no sonho de um cochilo, mesmo que só ao fundo, compondo a cena. Lembre-se e deixe que um sorriso cresça e tome força pela lembrança. Separe um pedido no fim de uma reza. Eu me vou, mas salvo os cinco sentidos; guardo-me em você.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Dos dias o fim

Vejo, com a testa na janela, um rosto
Vejo a teimosia de um velho
Que se agarra a ouro gasto.
Segura o tempo para ele aprender a não correr
Segura o tempo para ele aprender a se arrastar

Diz: “ Demora, por favor, para eu poder me lembrar
Dá-me os ponteiros, por favor, para eu poder me entender.”

Seu meu plano de vida
É estagnar
Roubar-lhe os ponteiros para levar
E viver dos dias o fim como hoje.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Conselho de um velho

Deve

Roubar-te uns anos
pra viver mais hoje
o teu dia não acaba
Foi só a noite
Mais fácil que pensar em cair
Mais fácil que crer e prever
É dobrar esquinas
E guardá-las no bolso.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Assim, mudo o mundo

Esqueço minhas chaves de propósito.Qual o seu ?Doze? Assim eu consigo driblar o destino. Os minutos que eu gasto voltando pra casa e pegando as chaves mudam as horas que eu vou estar nos lugares e o meu futuro , assim, não é o mais óbvio, o planejado. Por exemplo: Se eu tivesse me lembrado das chaves quando sai de casa, não me atrasaria, não a veria entrando neste prédio e a porta que eu segurei pra você se fecharia. Provavelmente não falaria com você nunca na minha vida. Chegou o décimo andar, boa tarde.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O poema que nunca li

Aquele poema marcou em minha memória um sentimento de êxtase. Estava sentado na sala de estar, meus pais jantando, quando uma mulher recitou um poema de Carlos na televisão. Foram entranhando-se em meus ouvidos as mais significativas palavras que ouvira, pois me trouxeram uma felicidade ímpar. Talvez devido à semelhança entre os conflitos do escritor e os meus. A súbita comoção transbordou-me a razão, e inconscientemente, me esqueci dos versos.
Esqueci-me, também, do tema do poema. Só possuía a lembrança do sentimento ao ouvi-lo.
Saí de casa correndo em busca de minhas palavras. Tomei o ônibus, e os cinco minutos do trajeto pareceram horas. Cheguei à livraria e comprei todos os livros de Drummond que encontrei. Devorei as páginas violentamente. Em vão.
Não encontrei meu tão desejado poema, e desculpe-me, leitor, mas não o encontrei até hoje. Anseio pelo poema, ou pelo menos por seu esquecimento, para livrar-me a angústia. Porém ele se pensa por si, na cabeça impotente de uma mente capaz.
Em alguns dias, penso que talvez o poema não exista. Talvez a televisão estivesse desligada naquele tarde. Esse pode ter sido um plano de minha própria alma sobre meu corpo. Como uma forma de sempre promover um desejo de procura. Uma ânsia de viver em função de encontrar algo.
Penso, em outros dias, que o poema não é de Drummond, mas meu. E a minha sede de ler, é transformada em vontade de escrever, (re)produzir e ordenar as tais palavras na ordem sublime que ouvira em meu devaneio.

Esforço para ver tua alma em vão

Inexplorável alma é a alheia
Dividi-se em quinhões e aos milhões
A cadeira parece estar vazia
Uma vez invisíveis uns aos outros

No esforço gritante que no fim
Não revela do filme nem a cor
Não revela do campo nem a flor
Minha vida, sinuosa, esvai-se.

Por fim desfaço o véu da nova moça
As paredes são tontas, estreitaram-se.
E o sufoco embaça-me os olhos.

Desgostoso, não vejo nada além.
Da superfície lisa, encobridora
Desse mar, que no fundo é revoltoso