sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

aperto

o miúdo se encolheu e chorou. sentiu o coração na boca. pulsando dentro dela. e o coração cresceu, enchendo-se de sangue. afastando os dentes. as lágrimas pulavam dos olhos saltados. o coração não parava de crescer e os dentinhos tortos e pontudos começaram a rasgar o coração inquieto. abriu rasgos fundos e vermelhos. o miúdo juntou as forças e apertou os dentes contra a própria carne. furou o coração. mordeu e rasgou e esmigalhou. arrancou os pedaços e os engoliu lentamente, mas com ritmo e força. engoliu cada pedaço de carne até que não havia mais nada. parou de chorar.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

reatar os atos

finja que você está indo buscar aquele velho retroprojetor na casa dela. diga que quer dar uma aula a partir de transparências que achou na faculdade. deixe ela dizer novamente como ela mesma dava aula com o retroprojetor; como os alunos sempre perguntavam como ela era professora tão nova; como manoel, “um dos maiores poetas da contemporaneidade”, foi aluno dela; e como ensinar é estar vivo. ela vai gostar.


depois vá pro corredor. abra a porta devagar - ele deve estar ouvindo o rádio - e diga. pode ser baixo, mas firme, com força: vim buscar o retroprojetor.

domingo, 18 de agosto de 2013

memória de peixe

“por favor, esquente o peixe que vou comer sozinho e entrar no mar daquele saudoso abril. entre as espinhas, a areia quente; pelo sal, a flor; na pele, a pele. comer sozinho é sempre uma forma de lembrar”

o senhor está sentado na mesa de madeira. “o velho é assim, come sozinho”. sempre comeu, desde novo. apesar de nunca ter sido de verdade novo. as empregadas dizem em voz baixa que ele já saiu da mãe com a barba hirsuta e branca. e chorou, molhando os pesados fios. cresceu um garoto enrugado, sentado na mesa de madeira. cada refeição procurando o espaço entre os fios de bigode e os dentes tortos. comer sozinho é sua atividade preferida. grandes pratos em demoradas garfadas. como uma baleia abrindo a boca e deixando a água entrar vagarosa pra comer um peixe pequeno. 

o senhor está sentado na mesa de madeira, mas hoje não vai comer sozinho. essa moça veio, puxou uma cadeira e sentou-se. um peixe pra dois, hoje.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

até que nos sentimos vermelhos


teu olho no meu em desespero cruzado. tu te aperta o peito e grita que não quer ter olhos. te abraço forte por tempo interminável e dançamos em descompasso. o violino pisa nos teus pés, o grave te empurra, o agudo desloca e a voz desalinha roupas. te cubro de ternura por não ter verdade pra te dar. escrevo o que tenho no teu corpo. o começo em tuas pernas, o frio na barriga, o medo, a certeza, o amor e a entrega. damos os nomes dos frutos e vivemos a vida escrita em sua pele - é o que tenho. acreditamos na tinta até que nos sentimos vermelhos, desfocados e abrimos os olhos e tudo preto.

domingo, 2 de junho de 2013

o futuro

saber que fui mais feliz me fazia mais feliz. lembrar. no alto de minha precoce velhice -chegou aos trinta- , comecei a olhar lá embaixo e ver aqueles trinta anos passando em um rio estranho, um rio onde a mesma água passa diversas vezes. pensava se não há um mar, mas não. o rio só segue. a água dá a volta no globo e passa de novo embaixo de minha velhice. é a mesma linha, na qual não caberia uma vida inteira. só trinta anos. infinitos. No sexto ano de contemplação olhando para baixo, um desvio. minha companheira, que passa lá embaixo no rio também está aqui em cima, e me chama a atenção com um assovio. olho para trás e lá está ela. é bonita. mas é bonita lá embaixo. penso, mas não consigo saber onde é mais bonita; com a incidência perfeita dos raios solares lá embaixo, ou aqui em cima, mais perto, com os raios ofuscando alguns desconhecimentos. não importa. tiro o olho do rosto e abaixo o olhar. debaixo dos seios perfeitos, uma barriga estufada. percebo quase instintivamente que nessa barriga há dedos, mãos, olhos, pernas, coração. me emociono. lembro novamente e fico ansioso. olho para baixo. percebo então que de meu rio há um outro, nascendo do meu. um mínimo rasgo de ângulo que oferece à agua outro caminho. rapidamente minha cabeça treinada pensa no infinito, em padrões e projeta a infinidade de rios com rasgos de ângulos. crio, então, um globo inteiro, lotado de meridianos e paralelos, linhas de vida que se cruzam incansavelmente. meu rio é intercortado por outros e não é mais possível saber que água é de meu rio. olho de volta para minha companheira e nossa barriga e, forçando, envergo minha coluna antes tombada para baixo. consigo olhar para cima.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

para não esquecer


eles a amaram. ajeitaram-lhe os cabelos, acenderam-lhe os cigarros, apontaram-lhe a direção certa, desenharam-lhe o corpo, alinharam-lhe a coluna, seguraram-lhe os dedos, assinaram-lhe as cartas, deram-lhe o prazer. quando morreram, fizeram-lhe uma última homenagem: incharam para ninguém conseguir retirar; os dedos protegeriam-lhe a aliança. 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

ASSASSINO!


calor. o sol fritava formigas na grama.... os pássaros voavam sem ossos nas asas.... todas as pálpebras estavam pela metade.... as pás do moinho bocejavam.... um homem deitado na grama apoiado em uma pedra.... suas pernas emadeiradas.... um pedaço de palha já irritado por ser tanto mascado....  sua testa molhada de suor.... uma gota não tem força para se segurar e pinga de sua sobrancelha no bolso da camisa, que também se irrita.... o homem tem uma carabina que descansa em suas mãos.... ele levanta o chapéu sem pressa.... levanta a caribina devagar e aponta pro céu.... o céu.... metade do céu fica preta e a outra mais focada, o homem fechou um olho.... ele procura os pássaros gordos.... acha um e o acompanha de longe.... le   n   ta    m   e    nt    e.... e desiste.... acha outro.... o acompanha.... também desiste..... acha um bem gordo.... o acompanha.... não pode ir rápido para não o ultrapassar.... nem devagar demais para não o perder.... na medida.... e mira.... o homem tira o dedo do gatilho.... e faz o movimento de apertá-lo no ar.... com a boca faz “ptchíuuu”.... abaixa a carabina.... respira.... a 
 b
 a
 i
 x
 a    o    c  h  a  p  é  u....  b   o   c         e          j    a....
 c                        o                           c                         h                            i                        l                     a         .................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. acorda.... passa a mão na testa suada.... funga.... levanta a carabina de novo.... aponta para o céu....  o céu.... metade do céu fica preta e a outra mais focada, o homem fechou um olho.... ele procura os pássaros gordos.... acha um e o acompanha de longe.... le  n  ta   m  e   nt    e.... e desiste.... acha outro.... o acompanha.... também desiste.... acha um bem gordo.... o acompanha.... não pode ir rápido para não o ultrapassar.... nem devagar demaQuando surgem atrás do pássaro uma multidão de cores, como um arco-íris mais vívido, mais saudável, bem alimentado, AS CORES BERRAM! É lindo demais! O homem se anima e PTCHÍUU! Atirou.... o balão cai lentamente.... riscando o céu.... chega ao chão.... e as dez pessoas dentro dele morrem.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

CADARÇOS


estávamos no parque, numa segunda fria. não tinha mais ninguém lá, só aquelas árvores com folhas amarelas. só nós dois. eu te abraçava, mas não com carinho. quer dizer, não só com carinho. se alguém olhasse com atenção veria que seus pés estavam fora do chão. na verdade eu estava segurando seu corpo. puxando-a pra baixo. mas não adiantava, seu corpo cada vez mais se forçava a subir, escorrendo e meus braços fracos já não aguentavam mais. te abraçando já pela cintura comecei a te imaginar indo embora pra sempre, as pernas passando pelos meus braços, as canelas finas, o tênis vermelho. não sei porque pensei nos cadarços roçando nos meus dedos. acho que é porque me lembrei de como você gostava da palavra cadarços. CADARÇOS. palavra engraçada mesmo. acho que é porque o erre ali no meio te faz fazer arr, tipo um leão, ou porque tem um cedilha ao invés de um s, como em arsênio ou varsóvia, seilá. enquanto fiquei pensando nisso seu corpo foi escorregando e só conseguia abraçar seus pés, na altura do meu rosto. meu nariz amassado e a boca torta. e tive uma ideia, te amarrar pelo cadarço. torto e desengonçado, dobrei a perna, tirei meu tênis, dei um nó em nossos cadarços e calcei o meu tênis com a mão. fomos, voando por cima do parque, pra sempre. separados, mas juntos. comigo a seus pés.

domingo, 31 de março de 2013

mãos pesadas


d e s a   n u  vi     a         r.

vamos afastar os cabelos delas pra trás das orelhas
e os medos pra fora da porta.
escrevam teus nomes e os telefones nesses papéis de pão.
esse café da manhã ainda ontem é que nos une.
vamos pra praia?
afasta as nuvens com as mãos pesadas,
que o sol vai deixar marcado
mesmo que os papéis de pão se percam,
mesmo que a gente durma,
mesmo que o bronzeado passe,
ficaremos marcados. 


com recurso de Lucas Millecco

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

canção futura


Texto inspirado na música "Desalinho" de Gabriel Turner.



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sussurros

Altêe o som das batidas de teu coração noutro lado da rede, por favor. Eu quero escutar o sangue correndo nos vasos das plantas da varanda. Pra te salvar, te rego com um beijo no pé enquanto abraço tuas pernas compridas. As tenho, mais duas, pra ancorar nossa casa-barco-rede no mesmo lugar; porque tuas pernas não são feitas pra remar e quem tem que se mexer é o vento. Te vejo dormindo e sinto que essa brisa vem de tuas narinas, me despenteia e logo percebo que este é caminho onde repousam as tormentas, onde compartilhamos da angústia com os peixes. Aqui pelo canto, lamento o que não dito tornou-se choro, argumento, lástima, ou só monóxido. Os grãos de areia que restam, não comprometem o toque, e menos ainda o espanto da alma. Neste barquinho, o tempo me poliu com a incerteza dos amores tropicais, e salvei-me porque como todo espirito liberto, amei profundamente tudo o que podia. Altêe o som das batidas de teu coração noutro lado da rede, por favor. Eu quero escutar o que o vento tentou me dizer sussurrando. - Eu quero enxergar onde teus braços resolveram apontar enquanto suavemente pousavam em mim. Quero sentir de novo aquilo que teu corpo tentou me avisar com o calor, quero-te agora pra dormir tranquilo, e num futuro próximo para navegar por inteiro. 

Mulher, repete o carinho que nos fez debochar das diferenças: Fecha teu olho e me beija com a alma agora, pois logo as âncoras se desfazem e a maré vem cobrar o que é dela. Seremos vento então, história, piada ou só monóxido outra vez. Aqui o tempo não perdoa nada, e o que nos restará é ser a lembrança do sangue correndo nos vasos das plantas de outros amores. Sussurros.


AUTORIA CONJUNTA DE GABRIEL TURNER E RAFAEL SPÍNOLA

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013



(Maria Flor),

te protejo desde o nome.